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06/11/2020 - 09h43

Liberdade para trabalhar

Fonte: O Estado de S. Paulo / Almir Pazzianotto Pinto*
 
Regulamentação pode destruir avançada e liberal forma de trabalho assalariado
 
 
O trabalhador, tal como o conhecemos hoje, é fruto da primeira Revolução Industrial. Sua existência como classe data do final do século 18. Surge com a invenção das primeiras máquinas de fiar e de tecer na Inglaterra. Até então esse trabalho era executado em casa, com a utilização de equipamentos toscos, de reduzida capacidade produtiva. 
 
A esse respeito escreveu Jurgen Kuczynski: “Antes de la introducción de las máquinas, el hilado y tejido de materias primas se hacía em la casa del trabajador. Su mujer y su hija hilaban el hilo que el marido tejía; o bien lo vendían cuando el padre de família no lo trabajaba en persona. (...) De esta manera vegetaban los trabajadores en una existencia tranquila, llevando una vida pacífica y ordenada llenos de piedad y dignidade. Su bienestar material era mucho mejor que el de sus sucessores” (Evolución de la Classe Obrera, Ed. Guadarrama, Madri).
 
A Revolução Industrial provocou o aparecimento de grandes unidades industriais construídas pela iniciativa privada. Karl Marx sintetiza de forma magistral a passagem da economia rudimentar para o processo de produção industrial. Leia-se o que escreveu no Manifesto do Partido Comunista, cuja primeira edição inglesa data de 1850: “A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica industrial capitalista. Massas de operários, amontoados nas fábricas, são organizadas militarmente. Como soldados da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não são somente escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também diariamente, a cada hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho, odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo”.
 
Ignoro o nome do inventor do relógio de ponto. Creio ter sido alguém informado pelo desejo de impor disciplina ao processo de fabricação, para obter da força de trabalho os melhores resultados. Alguém – como Frederick W. Taylor, pai da gestão científica (Scientific Management), ou Henry Ford, criador da linha de montagem – empenhado em garantir à livre-iniciativa “prodigioso desenvolvimento da produtividade por meio do desenvolvimento da tecnologia”, como registrou Louis Althusser em prefácio para o livro primeiro de O Capital.
 
No Brasil a sujeição do empregado comum à rigidez do horário e à assiduidade é disciplinada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e na Lei do Repouso Semanal Remunerado. Qualquer que seja a forma de remuneração, nunca se pode atrasar ou deixar a oficina antes de se encerrar a jornada. O tempo destinado ao repouso ou à alimentação e o intervalo entre jornadas são delimitados. A lei o obriga a registrar o ponto quatro vezes por dia. O custo da mão de obra é um dos principais componentes do custo final. É natural que o empregador procure conseguir o máximo rendimento dos assalariados. 
 
A Constituição da República e a CLT traçam limites à duração diária e semanal da jornada, determinam que horas extras não ultrapassem o limite de duas e que sejam pagas com o acréscimo mínimo de 50%. Férias e repouso semanal são calculados proporcionalmente às faltas não justificadas. Nos estabelecimentos com mais de dez empregados a anotação da hora de entrada e saída deve ser feita “em registro manual, mecânico ou eletrônico” (artigo 74). 
 
O isolamento determinado pela pandemia de covid-19 acelerou a expansão do teletrabalho. Na residência o empregado iniciará a jornada sem os atropelos habituais. Economizará os gastos com transporte individual ou coletivo. Se quiser, terá alguns minutos para atividades físicas, tomará o café da manhã ouvindo ou vendo as últimas notícias, irá ao computador adquirido de acordo com o modelo escolhido e executará as tarefas do dia ou antecipará as do dia seguinte. Não haverá horário rígido para a refeição feita em casa ou encomendada no delivery. Se necessário, interromperá o trabalho para ajudar a esposa, correr ao supermercado e dar atenção aos filhos. Desde que execute a tempo os serviços sob sua responsabilidade, organizará com liberdade a jornada de acordo com sua melhor conveniência.
 
A libertação do ponto é uma das vantagens do teletrabalhador. Esgarça o regime de subordinação inerente ao contrato. Sobre a nova e revolucionária modalidade de trabalho pesa, contudo, ameaça de regulamentação detalhada, com o perigo de causar prejuízos a ambas as partes, destruindo avançada e liberal forma de trabalho assalariado. Infelizmente, trouxemos de Portugal a prolixidade barroca das Ordenações Afonsinas (século 15), Manuelinas e Filipinas (século 16/17). 
 
A Lei n.º 13.467/2017 reformou a CLT. Antecipou-se à pandemia ao lhe acrescentar cinco dispositivos sobre teletrabalho (artigos 75-A, B, C, D, E). Bastará interpretá-los de forma racional e aplicá-los com boa-fé e inteligência para que esse veículo de modernização não se perca. 
 
*Almir Pazzianotto Pinto, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
 
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