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04/02/2021 - 09h20

Ministro está certo ao pedir que caminhoneiros "desmamem" do Estado

Fonte: UOL / Cleveland Prates*
 
No último domingo, foi divulgada uma conversa aparentemente por telefone entre o Ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, e um possível líder do movimento dos caminhoneiros (veja mais em: Áudio do ministro Tarcísio agita caminhoneiros na véspera da greve). Fiz questão de ouvir todo o conteúdo da conversa disponibilizada e a minha conclusão foi a de que, neste caso específico, o ministro fez exatamente o que se espera de um gestor público sério.
 
As principais ideias de sua fala podem ser resumidas da seguinte maneira: os caminhoneiros que não desmamarem do Estado verão as empresas crescendo e terão cada vez mais dificuldades.
 
O governo não contrata fretes e quem estabelece o preço é o mercado. Assim o governo não poderia ser responsabilizado pelo frete ruim ou pela falta de trabalho. O tabelamento de fretes não funciona e a prova é que já dadas mais de 13 mil autuações.
 
E, finalmente, que os caminhoneiros precisam pensar como empresário, se inserido em um contexto de transporte que está em modificação, pois, do contrário, não ganharão eficiência para permanecerem no mercado.
 
Já me manifestei mais de uma vez expondo as razões pelas quais entendo que as reivindicações da categoria têm sido uma aberração e ferem, inclusive, o princípio da livre concorrência (veja mais: Cleveland Prates: Um atentado à livre concorrência e veja também: Tabela de frete vai ser ruim para toda a sociedade, incluindo caminhoneiros).
 
Não discuto a importância da categoria, que, como tantas outras, é de fato bastante relevante para o país. A questão não é esta, mas sim a legitimidade e a legalidade de suas solicitações, tomando por base o impacto sobre o conjunto da sociedade e até mesmo a efetividade para a categoria. E nesta discussão, sempre vejo um grande equívoco, espraiado por todos os lados, inclusive pelos mais diversos veículos de comunicação, de que estamos tratando de uma greve.
 
Greve pressupõe uma relação trabalhista, algo que não ocorre no caso dos caminhoneiros. O que existe é uma relação de prestação de serviços em um mercado potencialmente competitivo. Neste sentido, o Ministro Tarcísio foi muito feliz em dizer que os caminhoneiros precisariam pensar como empresários.
 
Em um mercado competitivo, os preços devem ser formados pelos movimentos de demanda e oferta, e não imposto pelo governo. E neste aspecto é fácil de entender o porquê dos caminhoneiros não estarem felizes com a disposição a pagar dos contratantes de fretes.
 
Por um lado, estamos vivendo uma crise econômica forte, o que gera impacto também no setor de transporte. Por outro, devemos lembrar que, durante o governo do PT, houve uma forte política de subsídios à compra de caminhões, que elevou substancialmente a oferta neste mercado.
 
Assim, estamos vivendo um momento de excesso de demanda, o que, obviamente, leva o valor dos fretes para baixo e reduz a quantidade de trabalho disponível. Em uma situação como esta, é natural que alguns prestadores de serviço saiam do mercado, reequilibrando a relação entre oferta e demanda. Assim, o preço se eleva até o ponto em que os profissionais que continuem atuando no mercado consigam pagar seus custos, inclusive o de oportunidade de se manter na atividade.
 
Em geral, quem permanece são aquelas empresas mais eficientes, que muitas vezes têm uma escala mínima razoável. A própria saída de Wanderlei Alves, protagonista do último movimento dos caminhoneiros em 2018, é bastante ilustrativo do que se esperaria de reação em um ambiente como este (ver: Protagonista na greve dos caminhoneiros que parou o país muda de vida: "Larguei a boleia").
 
Entretanto, o que observamos na prática tem sido uma tentativa desesperada por parte da categoria de não fazer ajuste de oferta necessário e buscar normatização do governo federal que replicam o efeito de cartéis, algo bem documentado na literatura de economia política (ver: A Economia Política do Tabelamento dos Fretes).
 
O que está em jogo hoje é a exigência da efetividade da Política Nacional de Piso Mínimo para o frete e até a restrição à competição futura via cabotagem (ver: A pressão dos caminhoneiros contra o BR do Mar). Mas também há demandas de outro tipo como redução de imposto sobre o diesel e controle do seu preço, redução de pedágio e até mesmo financiamentos oficiais a juros mais baixos para a compra de veículos.
 
O grande problema é que para cada "direito adquirido", como falou o representante do caminhoneiro em áudio, há a contrapartida de "uma obrigação adquirida" pelo restante da sociedade. Na melhor das hipóteses, piso mínimo de frete e impedimento de concorrência via cabotagem implicam maiores preços pagos pelos consumidores.
 
A redução do imposto sobre o diesel, principalmente em um momento de elevado déficit público, deverá ser compensado pelo aumento de imposto sobre outros produtos, como sobre a própria gasolina. O mesmo raciocínio vale para o preço do diesel. A Petrobras deverá compensar essa perda com a elevação de outros preços, caso não queiramos assistir a mais um processo de descapitalização da empresa.
 
Também no caso do pedágio, a perda de receita das concessionárias deverá ser compensada por meio de reequilíbrio econômico-financeiro de contratos, via elevação do valor do uso da rodovia para automóveis e ônibus. E financiamento com subsídios pode, ao invés de ajudar, criar o mesmo problema da super oferta que temos hoje no setor, além, obviamente, do impacto que geram sobre as contas públicas.
 
Neste sentido, eu interpreto a fala do ministro "sobre desmamar do governo" como uma preocupação legítima e correta de evitar que as contas sempre sejam repassadas para o resto da sociedade. Mais do que isso, com as concessões no setor ferroviário e a liberação de cabotagem, novos modelos de transporte serão criados, inclusive em redes, mudando o perfil de demanda para carga rodoviária. Este é um fato inexorável que os caminhoneiros terão que aceitar. E novamente, a franqueza do ministro é o que de melhor ele poderia fazer sobre isso.
 
Em realidade, o verdadeiro papel legítimo a ser cumprido pelo governo para ajudar os caminhoneiros é o de acelerar as concessões rodoviárias, melhorando inclusive a infraestrutura com áreas de descanso mais adequadas, e o de implementar uma regulação de segurança rígida, que impeça que as empresas exijam tempos de viagem inexequível para os motoristas transportadores de carga.
 
*Cleveland Prates, economista especializado em regulação, defesa da concorrência e áreas correlatas. Atualmente é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica, coordenador do curso de regulação da Fipe e professor de economia da FGV-Law/SP. Foi Conselheiro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e secretário-adjunto da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.
 
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