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06/06/2022 - 10h53

Mitos sobre Santos

Fonte: A Tribuna / Alcindo Gonçalves*
 
Há dois mitos bastante difundidos sobre Santos. Um deles é o da Cidade Vermelha, em razão das lutas políticas e sociais na cidade em boa parte do século 20; outro é o da mudança ocorrida nos anos 1990, quando ela teria se tornado conservadora, preconceituosa e reacionária. Nenhum dos dois paradigmas corresponde plenamente à realidade. É fato que a cidade assumiu papel de vanguarda no cenário nacional: aboliu a escravidão em 1886, antes da Lei Áurea, engajou-se na luta pela República e logo viu nascer sindicatos fortes e atuantes, principalmente no Porto. Em Santos, foi comemorado em 1895, pela primeira vez no Brasil, o 1º de maio, Dia do Trabalho, e ideias socialistas desde cedo circulavam entre intelectuais e profissionais liberais.
 
É preciso entender a estrutura social que logo surgiu na cidade. Sua população explode na virada do século 19 para o século 20, em consequência da construção do porto moderno e da exportação de café: de 9.151 habitantes em 1872 passa para 88.967 em 1913. Ou seja, quase nove vezes mais em 41 anos. Há, evidentemente, a presença da classe operária, notadamente portuária, com suas organizações e sindicatos, com greves e agitações e forte influência do movimento anarquista.
 
Um detalhe extremamente importante é, porém, o surgimento precoce da classe média em Santos, fruto dos negócios do café que eram realizados na cidade. No Censo de 1913, o principal segmento empregador era o comércio e classes correlatas, a indicar a força das camadas médias. Minha hipótese sobre a vantagem que candidatos e partidos progressistas e mais à esquerda conseguiram no período que vai de 1945 a 1992, com a interrupção durante a ditadura militar, é que havia uma aliança tácita entre os trabalhadores e esta nova classe média, que cresceu e se desenvolveu ao longo dos anos.
 
Sempre houve, entretanto, setores conservadores em Santos, e sua presença foi expressiva. Esse contingente era formado pela elite e pela classe média tradicional, mais antiga e defensora destes valores. É fundamental compreender a diferença entre as camadas médias tradicionais, conservadoras e até reacionárias, e a nova classe média, forjada durante o século 20, em que as pessoas tinham raízes na classe operária (os pais e avós eram trabalhadores autênticos, que viveram e participaram das lutas das primeiras décadas).
 
Essa aliança funcionou durante muito tempo, mas desfez-se no final do século 20. A nova classe média perdeu seus laços históricos com o passado, e aderiu ao discurso e à prática conservadora. Outros fatores contribuíram para o desgaste da esquerda: a queda do Muro de Berlim e o fim da utopia socialista em 1991, mais adiante a desilusão com o PT, enquanto declinava o interesse pela política e crescia o discurso contra a corrupção, vista como endêmica e destrutiva.
 
Santos não foi o Porto Vermelho tão sonhado e exaltado. Também não mergulhou inexoravelmente no mais profundo reacionarismo, embora boa parte da população, outrora oposicionista e enfrentadora, acomodou-se e passou a exaltar valores conservadores. Na realidade, houve e há tensão entre as duas posturas: no passado, a balança tendeu aos setores progressistas; hoje inclinou-se para os conservadores, mas isso não é definitivo. A atual tendência mundial de crescimento da direita influencia, mas nada garante que isso vá prosseguir nos próximos anos.
 
*Alcindo Gonçalves, engenheiro, cientista político, professor da UniSantos e coordenador do Instituto de Pesquisas A Tribuna (IPAT)
 
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