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14/06/2022 - 10h13

O estelionato eleitoral por trás da privatização da gestão do Porto de Santos

Fonte: Carta Capital - BrCidades / Por Carlos Alberto da Silva Junior* e José Marques Carriço**
 
Processo agora envolve a construção da travessia por túnel entre as cidades de Santos e Guarujá
 
A cada eleição, moradores de Santos e Guarujá, no litoral paulista, são brindados com promessas de solução de um dos problemas mais graves de mobilidade regional: a falta de uma ligação seca entre os municípios, cruzando por túnel ou ponte o canal do Porto de Santos, o maior do hemisfério sul. Em 2010, entrou para o folclore político a foto de José Serra, então governador de São Paulo e pré-candidato a presidente da República, inaugurando a maquete de uma ponte entre as duas margens do Estuário de Santos. Atualmente, os municípios são ligados por antigos sistemas de barcas e catraias, além do sistema de ferryboat, inaugurado em 1918.
 
A primeira de uma longa série de propostas de ligação seca entre as cidades data de 1927. Recentemente, em 2013, um moderno túnel submerso consumiu muitos recursos estaduais para projeto e licenciamento ambiental. Bastou entrarmos em período pré-eleitoral para mais uma vez candidatos de turno acenarem com a construção da travessia por túnel entre Santos e Guarujá. A proposta é fomentada pelo “Movimento Vou de Túnel”, composto por parcela da sociedade civil formada, principalmente, por técnicos e empresários dos setores portuário e de engenharia. Esta nova alternativa de traçado do túnel foi incorporada, pelo Ministério da Infraestrutura, ao polêmico processo de privatização da empresa federal que administra o Porto, a Santos Port Authority (SPA), em curso atualmente. Desde os anos 1990, a operação portuária é realizada por terminais privados, mas agora o governo federal aposta em um modelo de gestão não muito comum ao redor do mundo, delegando a um ente privado a administração portuária, como já está em andamento no Porto de Vitória.
 
Não está claro se o real interesse do movimento é apenas concretizar a conexão viária ou também apoiar a vinculação da obra à desestatização da SPA. No caso do governo federal, é evidente o cunho político, pois a obra serve de vitrine para o atual presidente que busca a reeleição e para o ex-ministro de Infraestrutura que almeja o cargo de governador de São Paulo.
 
Mas parece que a principal motivação, que deveria ser a melhoria das condições de mobilidade de milhares de trabalhadores que cruzam diariamente o canal do Porto, não tem sido considerada, pois a proposta apresentada até o momento não atende as necessidades da maior parte da população.
 
O Ministério da Infraestrutura, em conjunto com a SPA, elaborou nova versão do projeto criado em 2013, reduzindo o investimento necessário e aumentando o lucro da futura concessionária. A análise do Relatório Final de Avaliação Econômico Financeira do processo de desestatização da SPA mostra que a construção do túnel representa cerca de 10% dos investimentos previstos no período de concessão, porém recuperáveis com a cobrança de pedágio.
 
Por se tratar de infraestrutura inédita no Brasil, os riscos de implantação são maiores. Ao invés desse risco ser compartilhado, a modelagem da desestatização elimina os riscos do investidor, sendo o Governo Federal o grande fiador da obra, eximindo a futura concessionária de responsabilidade, prevendo a criação de uma empresa subsidiária para construção e operação do túnel.
 
Pelo histórico de concessões no Brasil, em que muitas vezes lucros são privados e prejuízos públicos, há possibilidade de que a nova concessionária alegue incompatibilidade do projeto desenvolvido pela SPA, justificando que os custos previstos no edital são impraticáveis, restando ao Estado brasileiro assumir esse compromisso. Para amenizar o discurso perante a opinião pública, foi preciso apresentar números que justificassem a privatização da SPA e o almejado Valor Presente Líquido (VPL) = 0 do ex-ministro da infraestrutura é o objetivo fim desse processo.
 
Analisando a proposta apresentada no “1º Fórum Vou de Túnel”, evento realizado em Santos, em março passado, observa-se que o projeto do túnel foi diminuído de tal forma que praticamente perde sua principal função social, a de integrar toda Região Metropolitana da Baixada Santista, proporcionando melhor qualidade de vida aos moradores, reduzindo tempos de viagem entre as cidades e oferecendo acesso a novas oportunidades de emprego, renda, estudos, lazer etc. Essa redução impacta principalmente os milhares de trabalhadores de Vicente de Carvalho, distrito de Guarujá, que atravessam o precário sistema de balsas para exercer suas funções em Santos. Além disso, idosos em busca de melhores serviços de saúde e estudantes do ensino profissionalizante e superior enfrentam diariamente a barreira que é o canal do Porto.
 
Pelo lado de Santos, o projeto foi anunciado juntamente com outra lenda urbana: o túnel de ligação com São Vicente, cortando o maciço de morros da área insular dos municípios, prometido desde a década de 1940, o qual Tarcísio de Freitas também promete realizar. Considerando que ambos os túneis representam uma alternativa interessante para encurtar o caminho entre a capital paulista e as belas praias de Guarujá, o tecido urbano de Santos poderá se tornar uma verdadeira rota de passagem, caso a gestão do trânsito não seja eficiente. Conforme a proposta, os acessos ao túnel sob o canal do Porto praticamente isolam a pitoresca Bacia do Macuco, marco importante da paisagem urbana da área portuária santista.
 
No lado de Guarujá foram propostas diversas modificações em relação ao projeto de 2013. Na embocadura em Vicente de Carvalho, distrito guarujaense onde se localiza a margem esquerda do Porto, detectou-se três alterações importantes: redução de realocações dos moradores de palafitas, alteração da posição do edifício de acesso de pedestres e ciclistas ao túnel e supressão da alça que segregava os fluxos de carga e de passeio. Mais à frente, o viário se alarga numa praça de pedágios que funciona em nível, segregando o tecido urbano do bairro.
 
Porém, a principal interferência ficará na Praça 14 Bis, a mais importante do distrito, onde se prevê a construção de um viaduto desconsiderando todos impactos provocados na paisagem urbana por esse tipo de infraestrutura. Por fim, em Guarujá, o novo projeto descarrega todo fluxo do túnel na Avenida Presidente Vargas que não possui capacidade para tanto. Além das externalidades negativas, esse fluxo estará desconectado dos eixos estruturais para acesso ao futuro aeroporto, outra lenda urbana, e aos terminais do retroporto da cidade.
 
Os principais benefícios socioeconômicos da obra, que seriam a extensão do trajeto do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), hoje só existente nas cidades de Santos e São Vicente, e a segregação entre veículos de carga e passeio, não estão garantidos. Se construído o túnel submerso, o pedágio seguirá remunerando o operador privado, que terá como única responsabilidade a manutenção do túnel, algo tão simples que poderia tranquilamente seguir nas mãos do poder público. Com isso, haveria maior controle social sobre o valor dos pedágios e o destino da arrecadação, revertendo em melhorias no transporte público.
 
A redução nos valores da obra que a nova proposta traz tem apenas um beneficiário: o concessionário. Os passivos aqui demonstrados permanecerão com a população, em especial os trabalhadores de Vicente de Carvalho. Na melhor das hipóteses, essa seguirá enfrentando problemas de mobilidade durante mais alguns anos, pois as intervenções previstas para a segunda fase do empreendimento dificilmente serão realizadas no médio prazo, uma vez que dependerão da captação de recursos pelo poder público municipal.
 
Tamanho é o descompasso que a Prefeitura de Guarujá só tomou conhecimento do novo projeto através do Fórum e, observando os impactos causados na cidade, enviou proposta à Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) através de consulta pública. No entanto, esse tipo de comunicação através de consulta corrobora a ideia de desarticulação, pois o poder público municipal teria que participar diretamente do desenvolvimento do projeto. Para isso, poderia se criar grupo de trabalho composto por representantes da sociedade civil organizada e técnicos municipais e federais.
 
Sem a implantação do VLT de forma integrada ao sistema de transporte coletivo e de bicicletas, trabalhadores de bairros mais afastados da travessia seguirão utilizando o sistema de balsas, em virtude do custo e do tempo de deslocamento que serão menores.
 
Intervenções prometidas para a segunda fase, como conexão com o futuro aeroporto do Guarujá e a extensão do VLT àquele município, dificilmente serão implantadas de forma coordenada, fazendo com que os benefícios advindos do túnel sejam imperceptíveis para a maioria da população. Provavelmente, os usuários da travessia do lado de Santos serão menos afetados, pois, em grande medida, cruzam o estuário em busca das praias de Guarujá ou do litoral norte de São Paulo por meio da Rodovia Rio-Santos.
 
Com exceção dos problemas apontados acima, as soluções propostas para o lado de Santos são mais elaboradas e de Guarujá mais simplificadas, denotando a falta de diálogo entre o Governo Federal e os municípios.
 
Quanto ao interesse nacional, a modelagem da privatização da SPA não conta com apoio unânime nem mesmo no setor empresarial, cujos representantes ainda veem com muita reserva o processo, temendo insegurança jurídica na renovação dos contratos de arrendamento das áreas dos terminais. Na verdade, a arquitetura da privatização incorpora a obra do túnel como chamariz eleitoral, visando ganhar adesão local aos candidatos aos governos estadual e federal.
 
O futuro concessionário assumiria a gestão portuária com receitas estimadas muito superiores às despesas previstas para todo o período contratual, desembolsando muito pouco a curto prazo, algo em torno de 7%, sendo que os investimentos no túnel representariam pouco mais da metade desse montante, evidentemente recuperáveis com a cobrança de pedágio. Na prática, a privatização da gestão dos portos brasileiros baseia-se em um modelo pouco explorado mundo afora, com resultados incertos em nível local, posto que o próprio modelo de negócios já prevê a demissão de quase mil empregados diretos e a aludida criação de dezenas de milhares de empregos viria a médio e longo prazos, com investimentos de terceiros, que bem poderiam ocorrer no modelo atual.
 
*Carlos Alberto da Silva Junior é arquiteto e urbanista, especialista em Mobilidade Urbana e Cidade Contemporânea. Membro do núcleo da Baixada Santista da BrCidades.
 
**José Marques Carriço é arquiteto e urbanista, doutor em Planejamento Urbano e Regional. Membro do núcleo da Baixada Santista da Rede BrCidades.
 
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