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08/10/2020 - 08h41

Tem um negro na minha vaga

Fonte: Valor Econômico / Ana Lúcia Stumpf González*
 
Crer que a meritocracia explica a ausência de negros em altos cargos é acreditar em teorias de supremacia racial


 
O recente episódio do programa de trainee da Magazine Luiza, direcionado para jovens negros, colocou lenha na fogueira do debate sobre racismo e ações afirmativas. De um lado, defensores das medidas que têm o objetivo de reduzir as desigualdades que reforçam a distância entre brancos e negros no mercado de trabalho, de outro, pessoas que enxergam nessas medidas contrariedade ao princípio da igualdade e acreditam em racismo reverso. A legalidade da forma de seleção proposta, também realizada por várias outras grandes empresas, já foi reconhecida em Nota Técnica do Ministério Público do Trabalho, de 2018, reafirmada em Nota Pública, em 22/09, e conta com a chancela do Supremo Tribunal Federal. O STF já analisou a questão das ações afirmativas em casos como o da reserva de vagas em vestibulares, concluindo que se trata de um mecanismo válido, que passa no teste de constitucionalidade, desde que seja voltado a populações vulneráveis pelos efeitos da discriminação. Já a Nota Técnica do MPT destaca que o Estatuto da Igualdade Racial expressamente autoriza as políticas públicas de reserva de vagas, inclusive no âmbito da iniciativa privada.
 
Mesmo assim, as redes sociais se inflamaram com discursos contrários às ações afirmativas, e a simplicidade de alguns argumentos conquistaram muitos likes. Para entender o significado de expressões como igualdade material, reparação e representatividade, é preciso mais do que 5 segundos de leitura de um tweet lacrador e muitos de nós não estão dispostos a refletir ou ler uma opinião fora da bolha, ou seja, uma opinião que tenha sido compartilhada por uma pessoa que não esteja dentro da nossa esfera de amigos e personalidades que seguimos nas redes. Para quem enxerga racismo reverso no programa da Magazine Luiza e acredita que não deveriam existir cotas, é importante propor algumas reflexões. Se você é uma pessoa branca, sugiro tentar o seguinte exercício: entre em uma loja qualquer, um supermercado, e compre um produto desses com etiqueta magnética, solicitando ao caixa que não retire a etiqueta, depois, observe o que vai acontecer quando você passar pela porta e o aparelho apitar. Eu já fiz isso, e sabe o que aconteceu? Nada.
 
Ninguém me olhou, o segurança nem se mexeu. Eu sequer estava bem vestida nesse dia, e ficou muito evidente o que aconteceu ali. Eu era uma mulher branca e isso me colocava fora de qualquer suspeita. Agora, imagine que a mesma cena acontecesse com um jovem negro usando moletom com capuz e boné. Você já sabe o desfecho nesse caso, o rapaz seria abordado com truculência pela segurança, com provável violência física. Ser branco nunca te prejudicou, esse é o ponto. E para quem acredita que a meritocracia é suficiente para eliminar os efeitos do racismo, é preciso lembrar que o desempenho como ferramenta de medição do mérito só funciona quando o ponto de partida é idêntico para os candidatos. Só podemos falar em mérito se todos os candidatos tiveram as mesmas oportunidades: estudaram nas mesmas escolas, tiveram acesso aos mesmos cursos de línguas, vivenciaram o mesmo intercâmbio fora do país, frequentaram os mesmos clubes e praticaram os mesmos esportes (sim, o networking depende do seu círculo social, não apenas da universidade que você frequentou).
 
Dizer que um jovem negro morador da periferia, que frequentou escola pública e conciliou os estudos com o trabalho desde cedo, caso se esforce bastante, terá as mesmas chances de sucesso do jovem morador dos bairros de classe média, que raramente precisou usar transporte público e só começou a trabalhar no estágio da faculdade, é cinismo ou ingenuidade. Some-se a isso o fator da representatividade. O jovem branco se sente merecedor e vivencia pertencimento ao se imaginar em cargos de chefia: desde cedo, ele vê que presidentes da República são brancos, juízes são brancos, âncoras de telejornal são brancos, e por aí vai. O jovem negro não tem esses referenciais, e a ficção é pródiga em ilustrar a posição do negro em papéis de subalternidade e marginalidade, situação que apenas recentemente vem se modificando e que depende não só da presença de protagonistas negros em produções audiovisuais, mas também de profissionais negros em atividades como direção, roteiro e produção. 
 
A superação do racismo não depende apenas de se reconhecer que há uma desigualdade entre brancos e negros no Brasil (desigualdade que é facilmente medida nas estatísticas que indicam a prevalência da população negra nos empregos mais mal remunerados e nas taxas de morte em ações policiais), depende de a população branca enxergar os privilégios decorrentes da sua mera condição de pessoa branca (ou aparência, mesmo quando há ancestralidade negra). Na verdade, o que causou perplexidade na seleção da Magalu foi o fato de que parte da população branca se sente ameaçada, para ela aquelas vagas devem ser naturalmente consideradas suas, porque sempre foi assim. Foi o que se viu no início das políticas de reserva de vagas nas universidades, muitos estudantes brancos reprovados diziam: esse cotista pegou a “minha” vaga. Entender que ser branco te coloca à frente na linha de largada é fundamental para começar a tomar consciência da importância de medidas que busquem igualar as oportunidades.
 
Não pode ser visto como algo natural o fato de que o país de maior população negra fora da África não exiba essa representatividade em postos de comando e cargos eletivos. Acreditar que apenas a meritocracia explica a ausência de pessoas negras em altos cargos é acreditar em teorias de supremacia racial. Refletir e se informar, lendo análises publicadas em veículos de imprensa sérios e não frases curtas de post replicado no grupo de whatsapp é o melhor remédio. Duvide dos discursos simplistas, nosso país não é simples, nossa história não é conto de fadas, e precisa ser conhecida, para que as desigualdade possam ser, finalmente, superadas.
 
*Ana Lúcia Stumpf González, procuradora do Trabalho
 
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