Artigos e Entrevistas

08/10/2021 - 09h29

Turismo de cruzeiros para quem?

Fonte: O Estado de S. Paulo / Ricardo Falcão*
 
Durante recente reunião da Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, reclamou que os preços da praticagem afastam os navios de passageiros do Brasil, prejudicando o turismo. Ora, apesar do revés na pandemia, normalmente o setor de cruzeiros é o mais lucrativo da indústria do shipping e vinha aumentando sua eficiência nos últimos anos, com sucessivos recordes de viajantes em praticamente a mesma quantidade de embarcações, segundo dados da Associação Brasileira de Cruzeiros Marítimos (CLIA Brasil).
 
Em todos os países em que atuam, os donos dos navios de passageiros se queixam dos custos de escala, que naturalmente reduzem seu lucro. A praticagem é apenas um desses custos, mas os preços do serviço para o setor são diferenciados e cobrados em reais, enquanto todas as despesas a bordo são em dólar. No entanto, talvez a grande questão que se coloca na fala do ministro é se, de fato, essa indústria é benéfica para o turismo brasileiro. A discussão já aparece em estudos e vem sendo travada em alguns lugares do mundo.
 
Obviamente, quanto mais navios a praticagem tiver que conduzir, melhor para os práticos, porém, não podemos deixar de pensar como cidadãos brasileiros. O que ganhamos com essas embarcações frequentando a nossa costa? Navios de cruzeiros são megaestruturas de entretenimento que, na verdade, concorrem de forma desleal com o turismo nacional, na medida em que retiram milhares de turistas que poderiam visitar inúmeros destinos do nosso litoral e do interior. Na última temporada, o maior deles tinha mais de cinco mil leitos.
 
Empregos e investimentos deixam de ser gerados pela indústria do turismo em solo nacional contra um número proporcionalmente pequeno de vagas de trabalho para brasileiros a bordo (uma embarcação há mais de 30 dias na costa deve ter só 15% de tripulantes brasileiros) e de contratações de prestadores de serviços locais, que sofrem pressões para reduzir seus preços sob pena de não serem contratados.
 
Os benefícios são poucos e restritos apenas ao pequeno número de cidades costeiras onde aportam. Mais de 20% dos cruzeiristas preferem os atrativos a bordo e sequer descem em uma das paradas da viagem, de acordo com o acompanhamento da própria CLIA Brasil. Este comportamento é reforçado pelo curto período de tempo que os turistas têm disponível para se ausentar da embarcação nos portos de escala (quase sempre inferior a oito horas). Isso é proposital, para que o turista gaste seu dinheiro no navio e não na cidade onde para.
 
Por outro lado, turistas que pernoitam em terra gastam muito mais. Em Key West, na Flórida (EUA), viajantes de cruzeiros desembolsavam uma média de US$ 72 por dia no porto antes da pandemia, segundo reportagem da Bloomberg. Já os turistas terrestres gastavam US$ 620 diariamente. Em novembro passado, os moradores do município votaram a favor de banir a atracação de embarcações com mais de 1.300 passageiros de capacidade e de limitar o número de desembarques a 1.500 pessoas/dia.
 
Não é sem razão. Afinal, além do efeito econômico reduzido na escala, todo o dinheiro gasto a bordo acaba no exterior. Senão, vejamos. A primeira coisa que um passageiro tem que fazer ao embarcar em um navio de cruzeiros é cadastrar um cartão de crédito internacional, já que todas as despesas são em dólar. Uma lata de refrigerante comprada a R$ 1 no atacado é vendida a US$ 5, tudo sem recolher impostos. Independentemente de juízo de valor sobre a atividade, o jogo é proibido no nosso território, mas basta navegar 40 minutos, a 12 milhas da costa, para os cassinos abrirem; assim como as inúmeras lojas e quiosques “duty free” que trazem produtos do exterior e não pagam impostos pela sua comercialização a bordo. Repetindo, todo esse dinheiro gasto no navio vai para o exterior por meio de cartões de crédito internacionais ou de dólares em espécie.
 
São recursos que poderiam ser gastos aqui em viagens mais duradouras, por inúmeros recantos belíssimos do interior e até do litoral do nosso país, não contemplados com a presença de navios de passageiros. Mesmo os pouco mais de 10% de cruzeiristas estrangeiros não viajam para embarcar em cruzeiros no Brasil, apenas aproveitam o trânsito do exterior para cá; logo, não trazem divisas do exterior. É uma indústria extremamente egoísta, sem qualquer compromisso com o desenvolvimento dos destinos.
 
Outra questão que pesa contra ela e vem sendo foco de debates mundo afora são os impactos locais e ambientais. Em julho, a Itália anunciou a proibição de cruzeiros em Veneza. A Unesco ameaçava colocar o cartão-postal na lista de patrimônios em perigo, diante do risco de inundações para as fundações do centro histórico.
 
Por trás do glamour dos cascos brancos, há ainda a preocupação com a poluição dos dejetos decorrentes da operação. Voltando ao exemplo de Key West, um estudo da Florida International University (EUA) constatou uma melhora na clareza das águas superficiais desde a proibição dos cruzeiros na pandemia.
 
Outra pesquisa recente chegou a achados semelhantes sobre prejuízos substanciais ao meio ambiente e à capacidade de a população local suprir suas necessidades, diferentemente dos dados inflados propagados pela indústria. O trabalho “Os impactos econômicos, sociais e ambientais do turismo de cruzeiros” traz indicadores do antes e depois da temporada e foi conduzido por professores da Ontario Tech University (CAN) e da Eastern Michigan University (EUA).
 
Os autores concluíram que ambientes de baixa tributação e regulação do segmento, característicos de países em desenvolvimento, são parcialmente culpados pelos efeitos negativos. E não estamos falando de uma nação como os Estados Unidos onde esses gigantes dos mares atracam em cidades com turismo consolidado. Trata-se de brasileiros que enfrentam todo tipo de barreira empresarial para alavancar seus negócios na área.
 
Por aqui, o governo federal autorizou a retomada da temporada em novembro, 20 dias após manifestação contrária da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O momento é oportuno para que tenhamos esse tipo de discussão, sem demonizar o setor, mas pensando se faz algum sentido protegê-lo com as isenções que pleiteia e se realmente é importante como complemento do turismo nacional. Este último sim, indiscutivelmente, deve ser valorizado. No nosso entendimento, o setor não complementa o turismo brasileiro e, sim, concorre com ele de forma desigual.
 
*Ricardo Falcão é presidente do Conselho Nacional de Praticagem e vice-presidente da Associação Internacional de Práticos Marítimos
 
Imprimir Indique Comente

« Voltar

Galeria de
Imagens

Ver todas