Notícias

13/08/2019 - 03h25

Avanço do serviço via aplicativo põe em xeque futuro do emprego formal

Fonte: Folha de S. Paulo
 
Seja por necessidade ou escolha, uberização cresce e exige novas regras de proteção ao trabalhador
 
 
Na semana que passou, o governo autorizou que motoristas de aplicativos se formalizem por meio do registro de MEI (microempreendedor individual). Agora, esses trabalhadores têm uma alternativa oficial para contribuir com a Previdência e receber benefícios como auxílio-doença e aposentadoria por invalidez. 
 
Ainda sem regulamentação e sistemas de proteção muito claros, mas em franca expansão, a prestação de serviços por meio de plataformas digitais —popularmente chamada de uberização do trabalho— é considerada um dos maiores desafios do mercado de trabalho no mundo.
 
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) não faz levantamento específico sobre esses profissionais, mas especialistas afirmam que boa parte deles está inserida hoje entre os 11,4 milhões de trabalhadores informais do país.
 
A Uber, principal expoente dessa tendência, contabiliza 600 mil motoristas cadastrados em seu serviço no Brasil. O iFood, líder no mercado de delivery de comida, conta com 120 mil entregadores. 
 
O número total tende a ser alto, pois os apps ganham terreno não apenas entre motoristas e entregadores. Há plataformas online voltadas a profissões tão variadas quanto técnicos de informática, médicos, faxineiros, esteticistas, garçons e advogados.
 
No mundo, já há pesquisas atestando o avanço dos apps.
 
Levantamento realizado no final de 2017 pela consultoria americana Gallup apontou que, nos Estados Unidos, 7,3% da força de trabalho usava aplicativos para oferecer serviços (incluindo pessoas que possuíam outras atividades). 
 
Considerando uma força de trabalho de aproximadamente 130 milhões de pessoas, isso significa cerca de 9,5 milhões de americanos buscando trabalho a partir de ferramentas como Uber, TaskRabbit (principalmente serviços de manutenção para casa) e Upwork (freelancers em geral).
 
Outra consultoria, a McKinsey, apontou que de 20% a 30% da população em idade ativa nos Estados Unidos e na Europa (mais de 126 milhões) possui renda de atividade independente, incluindo plataformas de serviços, venda de produtos ou aluguel de bens online. Desses, 15% estariam em atividades uberizadas.
 
Björn Hagemann, sócio-sênior da consultoria, diz acreditar que o trabalho na “gig economy” (economia dos bicos) tem potencial para ganhar terreno principalmente nas pequenas e médias empresas, nas quais não há demanda de trabalho suficiente para justificar contratações de determinadas especialidades em tempo integral. Assim, diz, o serviço pode ser demandado pela internet, e o trabalhador, atuar em várias companhias ao mesmo tempo.
 
Na avaliação da consultoria, essa melhor distribuição do trabalho levaria a ganhos de produtividade. Somadas a ferramentas como o LinkedIn (de vagas e currículos online), tecnologias que conectam, com agilidade, profissionais a quem precisa deles podem gerar um incremento de US$ 2,7 trilhões ao PIB (Produto Interno Bruto) mundial até 2025, sendo que US$ 69 bilhões seriam para o Brasil, diz a McKinsey.
 
O economista do trabalho Renan Pieri, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), diz que a possibilidade de contratação de serviços instantânea, via intermediação dos aplicativos, tem potencial para grandes transformações em toda a estrutura de contratação e de proteção ao trabalhador criada no país.
 
Segundo ele, seguindo a tendência global, o trabalho em plataformas digitais levará cada vez mais pessoas a atuar por conta própria, fazendo com que os contratos tradicionais regidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) fiquem restritos a uma elite de profissionais mais bem qualificados.
 
Na avaliação de Pieri, serviços para os quais o consumidor está menos preocupado com credenciais de quem o atende e nos quais as avaliações do app são suficientes para garantir uma qualidade mínima tendem a ser mais uberizados.
 
No grupo, estariam profissionais que realizam serviços para casa, professores de idiomas, atividades de estética e serviços para reparos em domicílio.
 
Os primeiros anos após o aparecimento dos aplicativos foram marcados por uma série de ações de trabalhadores pedindo que fosse considerado vínculo de trabalho entre eles e a empresa responsável pela intermediação do serviço.
 
O advogado Adriano Mendes, do escritório Assis e Mendes e especialista em direito digital, diz que é possível ver consolidado um entendimento de que o trabalho por esses serviços não é regido pela CLT.
 
Por outro lado, afirma que, por terem certo poder de controle sobre os trabalhadores, as empresas podem ser obrigadas a assumir outras responsabilidades, como o pagamento de indenizações por erros (um pedreiro contratado online que comete erro na reforma, por exemplo), o que indica que estão no meio do caminho entre a contratação e a falta de qualquer vínculo.
 
Uma parcela dos estudiosos do tema acredita que a intermediação do trabalho pelo app não deveria dispensar por completo as normas tradicionais de proteção. 
 
Ricardo Calcini, professor de direito do trabalho da FMU, defende que esse grupo precisaria de mais acesso à proteção social, como direito a auxílio-doença e aposentadoria. 
 
“O recomendável seria ter uma legislação específica para reger essa nova relação, aplicando-se direitos mínimos.”
 
Nem mesmo a reforma trabalhista, aprovada em 2017 com a proposta de modernizar a lei, trouxe mecanismos que se ajustam totalmente aos modelos das startups.
 
Walter Vieira, sócio da Closeer, de contratação de garçons sob demanda, conta que a companhia, criada no fim do ano passado, tentou usar contratos intermitentes para registrar os profissionais que atendem por seu app, aproveitando a nova regra.
 
Pelo contrato intermitente, o profissional pode ter múltiplos vínculos regidos pela CLT. Na modalidade, o trabalho não é contínuo —o profissional é chamado conforme a demanda do empregador.
 
Porém Vieira foi orientado por seus advogados a desistir do plano, por não haver ainda uma série de decisões na Justiça que dessem segurança para que sua startup usasse o modelo sem sofrer sanções. Ele optou então por solicitar que os garçons do serviço se formalizassem como MEIs.
 
Na avaliação do advogado Sólon Cunha, sócio do Mattos Filho, o modelo de negócios dos aplicativos traz evoluções que se chocam com a lei trabalhista brasileira porque ela foi pensada para um sistema de produção industrial, baseado em hierarquia e dependência do empregado em relação à empresa —modelo que perdeu espaço.
 
Nas plataformas digitais, diz Cunha, o que se vê é o mundo dos serviços, em que o trabalhador tem autonomia para definir sua jornada, atua em diferentes atividades simultaneamente e não depende de um superior.
 
Muitos jovens têm preferido esse novo modelo. Maele Luna, 25, produtora de vídeos de João Pessoa, deixou a agência de publicidade na qual tinha um trabalho com carteira assinada para não ter chefe e escolher seus horários.
 
Entre suas estratégias para conseguir trabalhos está o uso da plataforma Easymovie, na qual recebe online ofertas para atuar na edição de vídeos.
 
Luna identifica apenas um ponto negativo na escolha: falta de previsibilidade da renda.
 
“Ainda que eu ganhe mais hoje do que quando trabalhava como contratada na agência, era bom ter estabilidade.”
 
Muitos profissionais, porém, acabam indo para os apps após movimento encabeçado pelas empresas na tentativa de cortar custos e sobreviver no atual período de economia em marcha lenta. 
 
Ederson Fiuza, 32, descobriu a plataforma Eu Nerd nesse contexto. Segundo ele, há cerca de dois anos as empresas passaram a preferir profissionais que atuam por conta própria para serviços como os seus, de suporte de hardware, software e telefonia. Agora ele recebe solicitações de serviços pela plataforma Eu Nerd.
 
Apesar da perda de benefícios, como férias e 13º salário, Fiuza tem considerado gratificante a experiência. 
 
“Consigo ter acesso a milhares de empresas, conheço várias tecnologias, configurações de TI, locais, e meu networking aumenta”, afirma.
 
A advogada Alessandra Lanza, 41, que está na plataforma Justiça Express, concorda. O app é hoje a sua ferramenta para aumentar a quantidade de clientes no escritório, aberto há dois anos, quando deixou a atividade como diretora de departamentos jurídicos de empresas.
 
O serviço usa inteligência artificial para analisar propostas de ações apresentadas por usuários e identificar o advogado mais adequado para elas entre os cadastrados. “Na minha opinião, é um caminho sem volta —a digitalização vai substituir o boca a boca na indicação de clientes, isso vai acontecer muito rápido.”
 
Para o advogado Sólon Cunha, do Mattos Filho, o principal desafio dessa reestruturação no mundo do trabalho é a criação de alternativas para garantir aposentadoria e serviços de saúde para os novos trabalhadores. Parte da questão, diz, pode ser enfrentada com incentivos a contribuições individuais à Previdência ou poupança pessoal.
 
As companhias responsáveis pelos apps se dizem dispostas a discutir meios de apoiar trabalhadores a ter acesso a benefícios do tipo, mas afirmam que uma regulação rígida reduziria seu potencial de gerar negócios.
 
“São modelos distintos para os quais é preciso ter olhares distintos”, diz Marcos Carvalho, diretor de engajamento da ABO2O (associação que reúne startups que adotam o trabalho sob demanda).
 
“Acho um debate nessa linha saudável, sem confrontar as novas relações sociais. O que não faz sentido é querer trazer para hoje um modelo da época em que nem se tinha internet”, afirma.
 
A ASCENSÃO DOS APPS
 
120 mil
entregadores constam na base do iFood no Brasil, líder no mercado de delivery de comida.
 
600 mil
motoristas estão no cadastro do Uber no Brasil.
 
9,5 mi
de americanos buscam trabalho em aplicativos como Uber, TaskRabbit (serviços de manutenção para casa) e Upwork (freelancers em geral).
 
126 mi
de trabalhadores nos EUA e na Europa têm alguma fonte de renda ligada a algum aplicativo.
 
Imprimir Indique Comente

« Voltar

Galeria de
Imagens

Ver todas