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16/08/2017 - 06:03:00

Barreiras da discriminação impedem ascensão dos negros no mercado

Fonte: O Globo
 
Afrodescendentes ocupam apenas 4,7% dos postos de direção de grandes empresas
 
 
“Não se aceitam pessoas de cor”. A frase era muito comum em anúncios de emprego até 1950, como descreveu Abdias do Nascimento no livro “O genocídio do negro brasileiro”. Deixou de ser usada a partir do ano seguinte, quando a Lei Afonso Arinos proibiu categoricamente a discriminação racial no país. Mas, como observou o próprio autor, “tudo continuou na mesma”, já que os anúncios passaram a requerer pessoas de “boa aparência”, num mero eufemismo para a restrição anterior.
 
Passaram-se quase 40 anos desde que uma das mais importantes vozes pelos direitos dos afrodescendentes no Brasil publicou a obra. De lá para cá, os processos seletivos se sofisticaram e as empresas apagaram a discriminação de seus anúncios. Sabem que não pega bem. Algumas também aderiram a programas de diversidade, ao passo que o Brasil estabeleceu uma forte política de cotas em universidades concurso públicos. Mesmo assim, as barreiras da discriminação persistem.
 
O Brasil tem hoje cerca de 53% da população composta por pretos e pardos, segundo classificação do IBGE. Mas apenas 4,7% dos afrodescendentes estão em postos de direção e 6,3% em cargos de gerência nas 500 maiores corporações do Brasil, como mostrou um levantamento do Instituto Ethos e do Banco Interamericano de Desenvolvimento no ano passado. Quando se faz um recorte por sexo, a discrepância é ainda maior: as mulheres negras estão em apenas 0,4% dos cargos de direção e em 1,6% dos postos de gerência.
 
— Caso o país continue caminhando no mesmo passo, ainda levará 150 anos até que a distribuição destas vagas esteja em consonância com a realidade da população — prevê o diretor presidente do Ethos, Caio Magri, com base em quase 12 anos de pesquisas.
 
QUESTÃO DE VIÉS
 
Para o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente, a discriminação hoje está muito acima do pedido de “boa aparência”. Tem a ver com uma atitude de “viés”.
 
— É uma questão mental e psicológica, em que aquilo que aparenta ser ameaçador ou negativo tendencialmente é excluído como possibilidade. Isso pode não estar decodificado num anúncio de emprego, como acontecia antes, mas o fenótipo continua norteando as escolhas. Ao final de uma seleção, quando há a presença física, esse olhar se manifesta — avalia Vicente.
 
Segundo ele, essa lógica também está presente no discurso muito ecoado entre os recrutadores de que é difícil contratar negros qualificados. Mas, tendo em vista a democratização do acesso ao ensino superior nos últimos anos, esse quadro vem mudando significativamente, sem que seja acompanhado pelos índices de recrutamento.
 
— A qualificação também cumpre hoje os fundamentos da “boa aparência” — conclui ele, enfatizando que há um milhão de negros nas universidades. — As empresas precisam sair do discurso de politicamente corretas e transformar isso em realidade objetiva.
 
Dono de duas empresas, o carioca Hugo Leonardo Russel, de 34 anos, já enfrentou olhares desconfiados, em função da sua idade e da pele negra, já que o meio empresarial é majoritariamente composto por homens brancos com mais de 40 anos.
 
— Aconteceu de pessoas chegarem numa reunião e perguntarem quem era o proprietário da empresa, sendo que eu já estava lá. E quando entrego meu cartão, muitos demonstram um olhar de surpresa — relata ele.
 
ESPAÇOS NEGADOS
 
Por trás da criação de suas duas companhias, uma de entregas e outra especializada em recrutamentos rápidos, há muito esforço. Além de diversos cursos e faculdade, Russel se preocupou em construir um bom networking e fazer apresentações impecáveis em reuniões.
 
— Isso foi importante para que, ao falar, conseguisse virar o jogo ao meu favor — diz ele. — Sempre soube que tinha que ser mais do que perfeito para vencer as predisposições ao meu respeito.
 
Bem-sucedido, Russel está acostumado a frequentar hotéis cinco estrelas e bons restaurantes. E os olhares e atitudes que o cercam no ambiente corporativo também o acompanham nestes locais.
 
— Um garçom já perguntou para a minha filha de 4 anos em que time eu jogo. Quando há um negro nesses espaços, as pessoas acham que é músico ou jogador de futebol — observa ele.
 
Como reafirma a diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros, Elisa Larkin, as pessoas negras têm protagonismo aceito apenas em áreas relacionadas ao entretenimento, caso do esporte e da música. Em carreiras como direito, medicina e comércio exterior esse espaço é negado.
 
— Isso vem de muita coisa. Durante a maior parte do tempo colonial, a música e a diversão das famílias abastadas eram feitas pelos escravos. E existe todo um elenco de estereótipos, pelos quais se atribuem ao negro uma falta de capacidade intelectual — analisa ela.
 
Um exemplo da negação do protagonismo ao negro correu as redes sociais nos últimos dias, com o caso da professora e mestranda Luana Tolentino, de Belo Horizonte. Na rua, uma desconhecida perguntou se Luana fazia faxina. A resposta foi: “Não. Faço mestrado. Sou professora.” O episódio foi contado por ela no Facebook, acompanhado de uma reflexão.
 
“No imaginário social está arraigada a ideia de que nós negros devemos ocupar somente funções de baixa remuneração e que exigem pouca escolaridade. Quando se trata das mulheres negras, espera-se que o nosso lugar seja o da empregada doméstica, da faxineira, dos serviços gerais, da babá, da catadora de papel”, escreveu.
 
Luana conta que a repercussão do texto mostrou a ela que há muita gente disposta a entender como e porque os negros ainda são tratados como segunda categoria.
 
— Por outro lado, recebi muitos comentários negando a existência do racismo e dizendo que não há problema em ser faxineira. E realmente não há. O problema é as pessoas acharem que nossas vidas devem sempre ser dedicadas a servir e limpar — responde ela, ponderando que o Brasil vive sob uma crença equivocada de que existe democracia racial no país.
 
Episódios como este, como avalia Elisa Larkin, reforçam o desafio que a causa negra tem de penetrar no inconsciente da população.
 
— Há uma consciência tão embutida num caldo social de discriminação, que não precisa ser explicitada ou ser uma atitude consciente. E muitas vezes isso vai acontecer justamente na entrevista de emprego — diz ela.
 
PORTAL DE OPORTUNIDADES
 
Enquanto a igualdade não chega, entidades se mobilizam para democratizar o acesso da população negra ao mercado de trabalho. Uma das iniciativas mais recentes é o portal Afrobras.trabalhando.com. No endereço, os afrodescendentes podem cadastrar gratuitamente seus currículos e se candidatar às vagas de emprego anunciadas. Do mesmo jeito, as empresas interessadas em diminuir a desigualdade racial no seu quadro podem anunciar suas oportunidades sem pagar nada. Segundo o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares e idealizador do portal, José Vicente, o objetivo é apresentar ao mercado de trabalho milhares de jovens negros qualificados.
 
— A questão racial não é um problema do negro, é um problema de todo o Brasil. Precisa ser colocada na agenda de todas as dimensões sociais, já que todos têm deveres e responsabilidades sobre isso. A sociedade civil, o ambiente empresarial, o político, religioso e estado precisam assumir essas demandas — diz ele.
 
E se várias políticas sociais andam na corda bamba em função de cortes orçamentários, o presidente do Ethos, Caio Magri, destaca que as empresas podem e devem cada vez mais fazer a diferença. Para estimular isso, a entidade criou a Coalizão Empresarial para Equidade Racial e de Gênero, que estimula a implementação e o aprimoramento de políticas públicas e práticas empresariais.
 
— As companhias precisam seguir se empenhando em diversificar seu corpo de funcionários. Isso, inclusive, proporciona reconhecimento e gera resultados, já que uma equipe plural é mais criativa e produtiva — diz ele. — Por outro lado, uma sociedade civil organizada e atenta a essas questões é fundamental para pressionar o setor empresarial.
 
O professor Marcelo Paixão, que leciona sobre desigualdades étnico-raciais na Universidade do Texas em Austin, lembra que uma pesquisa realizada com dados do Censo de 2010 já indicava que, dentre as centenas de ocupações classificadas no Código Brasileiro de Ocupações, os negros somente tinham remuneração mais favorável em 5% delas.
 
— Isso ocorria nas posições de menor prestígio nas quais, paradoxalmente, ser negro pode ser um fator de maior competitividade. Falo de ocupações como peões de obra, lixeiros ou o emprego doméstico, obviamente formas muito dignas de trabalho, mas vistas de maneira muito pouco valorizada pela sociedade em geral — pondera ele.
 
Na análise de Paixão, o Brasil apresenta um baixo grau de aversão à desigualdade racial. As pessoas tendem a considerar esse problema como algo não somente normal, mas um desejado estado natural das coisas. E a razão disso está enraizada na cultura, na história e na forma pela qual as desigualdades como um todo são avaliadas normativamente pelo conjunto da sociedade civil e do Estado brasileiro.
 
— Tais dimensões contribuem para dificultar ações que poderiam levar a uma reversão do cenário vigente — enfatiza ele.
 
INTERESSE DAS EMPRESAS
 
É por isso que Paixão julga tão importante manter este assunto na pauta da sociedade civil, do sistema político, da mídia e da academia. Do mesmo modo, é imprescindível que o setor privado se posicione mais proativamente.
 
— O principal empregador no mercado de trabalho brasileiro são as empresas privadas. A adoção de políticas em prol da diversidade não deve ser vista apenas como algo compensatório. Pelo contrário, as ações afirmativas no setor privado, que por definição teriam de ser adotadas voluntariamente (ao contrário das cotas nas universidades, onde há uma lei para tanto), devem ser vistas pelas próprias empresas como parte de seus princípios de governança corporativa e modelo de gestão. E, como tal, com potenciais efeitos sistêmicos para toda a economia e a sociedade — finaliza ele.